quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Por segundos, minha Delfina de novo



Olhou pra mim com os olhos molhados, num instante de sensatez ímpar – que há tanto eu não via – e disse, com voz embargada e até um visível desconcerto: “eu esqueço tudo, esqueço tudo...”. E silenciou.

Naqueles poucos segundos eu a vi como antes, quando você ainda era você. Minutos depois quebrou o silêncio com os mesmos delírios, os mesmos enganos que te calam a consciência mais e mais e te despertam a ira, a irritação, a desconfiança. E eu imersa no susto e na surpresa de vê-la novamente, te olhava o rosto com uma emoção muda. Que saudade! Fazia tanto tempo que eu não a via!

Embora frágil, ferida e envergonhada da própria condição, essa mesma que lhe deixa sem suas principais defesas, você ressurgiu daí de dentro e me deu um sinal de que ainda está entre nós. Sim, perdida em si mesma, mergulhada na covardia mental que chamam Mal de Alzheimer, acorrentada em algum canto da sua alma que se petrifica dia a dia. Mesmo assim, ainda conseguiu vir e me trazer esse sinal.

Os dias ao seu lado, na inútil tentativa de cuidar-te, me convencem de que não há doença pior, enfermidade mais cruel. Esse alemão assustador faz a gente perder as pessoas amadas em vida, lentamente, inexplicavelmente.

E conforme teu corpo baixinho vai perdendo massa, teus membros vão perdendo a força e a sensibilidade e tua mente vai perdendo as minhas, as nossas referências, eu vou perdendo a fé de que isso é reversível. Ora, não é. Estou te perdendo em vida, sim, enquanto você perde a afinidade que ainda lhe resta por mim, por todos nós. Até nisso essa doença interfere. Adeus confiança, lealdade, afinidade, amor... Mas nunca o meu amor!

O amor que eu sempre disputei com os demais: “Vó, de quem você gosta mais?”.

Justo o seu amor que sempre foi imenso, desmedido, leal. Justo você, que nunca deu descanso para a sua mente, que sempre foi à frente do seu tempo, que vendia saúde, inteligência, energia! Justo eu, que há tão pouco tempo tive uma perda tão grande, agora assisto você se esquecer de mim debaixo do meu teto, na frente do meu coração. Justo nós, que estamos aprendendo ainda a sermos família. Justo agora... que poderia fazer mais por você, te dar o que não teve.

Sua frase curta me disse tanta coisa, você não tem ideia! Disse “socorro”, “desculpa”, “estou tentando”, “estou aqui”, “não desista de mim”, “TE AMO”. E quando eu fui abrir a boca para te responder, você já tinha ido embora de novo, e eu dialoguei com a sua máscara, com o seu corpo – e nem ele parece o mesmo que tanto me cuidou, me abraçou e me levou a tantos lugares.

E cada vez que você se revolta com a própria falta de capacidades , de liberdade, de autonomia, mais meu coração fica partido e revoltado junto com você. O pior é que eu nem posso dizer isso – minha função é fingir que está tudo bem e que tudo dará certo. Eu sinto que quanto mais dependente você fica, mais presa à nossa ajuda e disponibilidade, mais cansada de viver você se mostra. Porque tem coisas que o Alzheimer não consegue apagar, e a sede de independência e de liberdade é uma delas. Mas de que adianta? Esse se torna mais um instrumento de tortura contra suas vítimas.

Ah, minha Delfina... minha avó tão amada! Você ainda é minha fortaleza, e o seu legado já foi eternizado, fique tranqüila. Não consigo mais enxergar seu corpo de antes, sua presença, seu olhar, mas consigo lembrar de tudo o que nos ensinou com exemplos mais vivos do que nunca. E consigo resgatar seus olhos molhados daquele dia, quando ressurgiu, pra me garantir que não nos deixou por completo. E nunca deixará. Aqui, comigo, está imortalizada.